A radiação e a gestante

Gestantes podem precisar ser submetidas a exames radiológicos para um diagnóstico preciso e conduta correta. Nestes casos a exposição à radiação ionizante e seus efeitos sobre o feto são motivo de preocupação para a paciente e o seu médico. Na verdade, a maioria destes exames é segura e não oferece risco significativo ao feto. No entanto, é importante que o radiologista conheça estes riscos potenciais para poder orientar adequadamente todos os envolvidos no atendimento.


INTRODUÇÃO

Exames de diagnósticos por imagem são freqüentemente realizados durante a gestação para avaliar afecções maternas preexistentes, inerentes à gravidez ou relacionadas ao feto. Os métodos mais difundidos são aqueles com pouco ou nenhum efeito sobre o feto, tais como a ultra-sonografia (US) e, mais recentemente, a ressonância magnética (RM). Os exames radiológicos são geralmente relegados a um segundo plano e eventualmente descartados ou adiados, em virtude da apreensão gerada pelos potenciais riscos à saúde do feto; no entanto, um diagnóstico postergado ou perdido, em função da não utilização destes exames, pode ser mais nocivo à saúde materna e do próprio feto do que os possíveis riscos associados ao uso da radiação ionizante. Conhecer os princípios e efeitos biológicos das radiações ionizantes, bem como os limiares de doses associadas a efeitos deletérios sobre o embrião e o feto, permite medir os riscos e justificar a utilização de determinados métodos radiológicos em benefício da gestante.


DEFINIÇÃO E MENSURAÇÃO DA RADIAÇÃO IONIZANTE

Qualquer discussão a respeito dos efeitos da radiação ionizante prescinde de uma clara compreensão sobre o que é a radiação ionizante e como esta é medida (dosimetria). Podemos definir a radiação ionizante como ondas eletromagnéticas de alta energia (raios X ou raios gama) que, ao interagirem com a matéria, desencadeiam uma série de ionizações, transferindo energia aos átomos e moléculas presentes no campo irradiado e promovendo, assim, alterações físico-químicas intracelulares.

Para se entender os efeitos relacionados à exposição à radiação ionizante deve-se definir as grandezas físicas utilizadas para quantificá-la. Com o objetivo de se medir a energia depositada por um feixe de fótons de alta energia (raios X ou raios gama) em um tecido biológico e os seus efeitos sobre este tecido, foi criada a grandeza "dose absorvida". A dose absorvida de radiação é a energia depositada por quilograma de tecido e é expressa em "rad" ("radiation absorbed dose", ou dose de radiação absorvida). Pelo sistema internacional de medidas utiliza-se a unidade "gray" (Gy), que equivale a 100 rad. Ela é adotada para qualquer tipo de radiação ionizante e não especificamente para o uso de raios-X (RX). Os efeitos biológicos não dependem apenas da dose de radiação absorvida (Gy), mas também das características da radiação ionizante e da sua capacidade de produzir íons e dissipar energia em sua trajetória no meio ou tecido. Por esta razão foi proposta, para o uso clínico de exames radiológicos, a grandeza "dose equivalente", usando-se a unidade "rem" ("roentgen equivalent man", ou equivalente em roentgen no homem), que leva em consideração a qualidade da radiação e como a energia se transfere ao tecido. Para as radiações eletromagnéticas X ou gama, 1 rem equivale a 1 rad. No sistema internacional de medidas, a unidade de dose equivalente foi denominada "sievert" (Sv) e 1 Sv equivale a 100 rem, assim como 1 Gy equivale a 100 rad. Podemos dizer que a dose absorvida de 1 Gy proporcionará uma dose equivalente de 1 Sv. Resumindo, a dose absorvida pode ser medida, atualmente, em Gy e corresponde à dose equivalente, que é medida em Sv. Na dosimetria das radiações utilizam-se freqüentemente os submúltiplos mili (m) e micro (µ) para indicar valores que correspondem a 0,001 Gy (1 mGy) e 0,000001 Gy (1 µGy).

A importância destas unidades de dose está na sua utilização para estimar a radiação absorvida pelo feto em exames radiológicos, como pode ser visto na Tabela 1.




EFEITOS BIOLÓGICOS DA RADIAÇÃO IONIZANTE DURANTE A GESTAÇÃO

As radiações ionizantes têm a capacidade de alterar as características físico-químicas das moléculas de um determinado tecido biológico. As células com alta taxa de proliferação são mais sensíveis à radiação ionizante e são encontradas em tecidos de alta atividade mitótica ou tecidos denominados de resposta rápida. A radiossensibilidade é inversamente proporcional ao grau de diferenciação celular (quanto menos diferenciada é a célula, mais radiossensível ela é) e diretamente proporcional ao número de divisões celulares necessárias para que a célula alcance a sua forma "madura". Portanto, as células humanas mais radiossensíveis são as células da epiderme, os eritroblastos, as células da medula óssea e as células imaturas dos espermatozóides. Ao contrário, células nervosas ou musculares, que não se dividem e são bem diferenciadas, são muito radiorresistentes. A morte clonogênica ou falência reprodutiva da célula está associada à resposta lenta ao reparo após irradiação dos tecidos, enquanto a suscetibilidade à morte celular por apoptose é associada aos tecidos de resposta rápida.

Os efeitos biológicos decorrentes das radiações ionizantes podem ser divididos em determinísticos e estocásticos. Os efeitos determinísticos são aqueles conseqüentes à exposição a altas doses de radiação e dependem diretamente desta exposição, como a morte celular (de células malignas submetidas à radioterapia), as queimaduras de pele, a esterilidade ou a ocorrência de cataratas. Os efeitos estocásticos ou aleatórios são aqueles não aparentes e que se manifestam após meses ou anos da exposição à radiação, não permitindo estabelecer claramente uma relação de "causa e efeito". Estão relacionados a baixas doses de radiação, como aquelas decorrentes de exposições freqüentes às quais os profissionais que trabalham com radiação estão sujeitos. A probabilidade da ocorrência do efeito estocástico é proporcional à dose e os efeitos mais relevantes são a mutação e a carcinogênese. Ao contrário dos efeitos determinísticos, é difícil estabelecer com segurança uma relação causal entre o efeito estocástico e a exposição à radiação ionizante, em virtude da grande quantidade de variáveis envolvidas e do longo tempo de latência para o aparecimento de um câncer de origem radiogênica. Por este motivo, os principais estudos sobre efeitos estocásticos são aqueles realizados a partir da análise das populações submetidas a explosões nucleares, como Hiroshima e Nagasaki, ou a acidentes nucleares, como Chernobyl. Mesmo assim, é importante observar que as conclusões obtidas nesses estudos referem-se a uma população submetida à exposição aguda de alta dose de radiação ionizante e que não reflete a realidade das pequenas doses às quais profissionais e pacientes são submetidos durante exames radiológicos de rotina. Neste contexto, também é oportuno lembrar que todos os seres vivos encontram-se permanentemente expostos à radiação natural ou de fundo, conhecida também como "background", que consiste na presença de radiações provenientes de radioisótopos normalmente presentes no meio ambiente e decorrentes da radiação da crosta terrestre e radiação cósmica, entre outras fontes, e que em alguns países industrializados é de cerca de 3 mSv/ano.

Para a gestante, esses efeitos biológicos são idênticos aos sofridos por uma mulher que não esteja grávida. Por outro lado, os efeitos biológicos decorrentes da exposição à radiação ionizante pelo feto merecem destaque e podem ser divididos em quatro categorias:
a) óbito intra-uterino;
b) malformações;
c) distúrbios do crescimento e desenvolvimento;
d) efeitos mutagênicos e carcinogênicos.

A ocorrência desses efeitos depende da dose de radiação absorvida e da idade gestacional. Geralmente, baixas doses de radiação absorvida podem provocar dano celular transitório e passível de ser reparado pelo próprio organismo. Por outro lado, altas doses de radiação podem interromper o desenvolvimento e a maturação celular, provocando a morte fetal ou malformações.

O embrião é mais sensível aos efeitos da radiação ionizante nas duas primeiras semanas de gestação; durante este período, o embrião exposto à radiação permanecerá intacto ou será reabsorvido ou abortado. Considera-se risco de morte fetal neste período quando a exposição for superior a 10 rad (100 mGy). Durante a 3ª e 15ª semanas de gestação (quando ocorre a organogênese), o dano no embrião pode ser decorrente de morte celular induzida pela radiação, distúrbio na migração e proliferação celular. Nesta fase podem ocorrer graves anormalidades no sistema nervoso central, que está em formação (por exemplo, hidrocefalia e microcefalia). Quando o feto é exposto a doses superiores a 100 mGy, podem ocorrer retardo mental e redução de cerca de 30 pontos no quociente de inteligência (QI) para cada 100 mGy acima do limite superior tolerado. É importante lembrar, no entanto, que é muito difícil que em exames diagnósticos de rotina, mesmo quando realizados com campo de irradiação direto sobre o útero, o feto seja exposto a essas doses de radiação. Entre a 16ª e 30ª semanas de gestação permanecem os riscos de retardo mental, inibição do crescimento do feto e microcefalia. Após a 32ª semana de gestação não há riscos significativos ao feto, excetuando-se um possível aumento do risco de desenvolver uma neoplasia maligna durante a infância ou a maturidade. Neste sentido é importante observar que a incidência natural de anomalias congênitas na população em geral varia entre 0,5% e 5%. Segundo diversos estudos, a probabilidade de malformações congênitas induzidas por exposição à radiação ionizante é da ordem de 0,5% para uma dose de 10 mGy; os riscos de microcefalia e retardo mental são de 0,4% e 0,1%, respectivamente, para uma dose de 10 mGy. Por outro lado, não foram identificados casos de retardo mental grave em crianças que foram expostas à radiação da bomba atômica antes da 8ª semana e depois da 25ª de gestação. A maioria dos estudos não tem demonstrado nenhum efeito adverso no feto relacionado à radiação ionizante em doses menores que 50 mGy.

Vários trabalhos têm demonstrado que quando o útero é submetido mesmo a baixas doses de radiação (20 mGy) aumenta o risco do feto desenvolver câncer na infância, e principalmente aumenta o risco de ocorrência de leucemia, por uma fator de 1,5 a 2,0 quando comparado à incidência natural. Porém, não está ainda claro se esta exposição deve ocorrer durante a gestação ou pode precedê-la. A Tabela 2 apresenta o risco de desenvolver leucemia em diversos grupos populacionais.





EXAMES RADIOLÓGICOS DURANTE A GESTAÇÃO

Exames de RX de crânio, tórax, coluna cervical, torácica e de extremidades expõem o feto a mínima radiação e virtualmente nula ou não mensurável. Todavia, alguns cuidados podem e devem ser tomados em pacientes grávidas, tais como usar protetores de chumbo sobre o abdome, colimar o feixe de raios X para a área de interesse e utilizar equipamentos permanentemente calibrados e aferidos. Exames de RX simples de abdome e coluna lombar também podem ser realizados, sem risco para o feto, procurando-se reduzir a dose ao mínimo necessário para se obter imagens diagnósticas. No entanto, deve-se considerar o fato da gestante estar bastante sensível e fragilizada, preocupada com o fato que a radiação possa afetar o seu feto, o que gera muita angústia e ansiedade. Portanto, sempre que possível devem-se priorizar métodos diagnósticos reconhecidamente inócuos ao feto, como US e RM. Existem evidências de que o uso de radiografias digitais também reduziria a quantidade de radiação ionizante absorvida pela paciente.

Doenças do trato urogenital, como urolitíase e infecções urinárias complicadas com pielonefrite, podem afetar com freqüência a gestante. Nestes casos deve-se utilizar a US e a RM como métodos de rastreamento e detalhamento anatômico. A US é bastante sensível para a detecção de cálculos nas vias urinárias, perdendo em eficácia quando o cálculo encontra-se localizado no ureter distal; nestes casos a US endovaginal pode ser alternativa diagnóstica eficiente(31). Quando a urografia excretora é indispensável pode-se reduzir a dose de radiação realizando-se apenas uma radiografia dez minutos após a injeção endovenosa do contraste; desta forma, é possível identificar os sistemas coletores e eventuais obstruções.

A dose de radiação absorvida na região abdominal em um exame de TC de crânio, coluna cervical, dorsal e tórax é superior quando comparada aos exames efetuados em equipamentos radiológicos convencionais, porém é bastante reduzida, não oferecendo risco para o feto; no entanto, é importante usar proteção abdominal como avental de chumbo para tranqüilizar a paciente e reduzir ulteriormente a dose de radiação. Em exames de TC do tórax, abdome, pelve e coluna lombar a dose de radiação absorvida pode ser reduzida diminuindo o campo de visão, a tensão (kV) e o produto da corrente pelo tempo de exposição (mAs) ao mínimo necessário para o diagnóstico, diminuindo o número de cortes e o intervalo entre estes. Em equipamentos helicoidais, utilizar "pitch" maior (igual ou superior a dois) oferece sensível redução da dose de radiação.

Mais recentemente, têm sido utilizados tomógrafos com múltiplas fileiras de detectores ("multislice"), o que tem proporcionado vantagens indiscutíveis, principalmente relacionadas à sua rapidez e definição em estudos abdominais e angiográficos (angio-TC). Todavia, esses benefícios têm sido acompanhados de aumento significativo das doses de radiação absorvida em órgãos abdominais, chegando a um aumento de até 90–180% quando comparada aos equipamentos helicoidais com uma única linha de detectores. As dose estimadas em órgãos como rim, ovário e útero foram comparadas entre essas duas tecnologias e valores consideravelmente mais altos foram atribuídos, principalmente à configuração e geometria do feixe dos tomógrafos "multislice". Sabe-se que há um compromisso entre dose e qualidade de imagem e que vários fatores influenciam as doses nos órgãos. Sendo assim, decisões sobre expor regiões que incluam órgãos reprodutores devem ser baseadas em critérios técnicos e avaliadas quanto aos riscos biológicos. Ao mesmo tempo que a tecnologia "multislice" se consolida como ferramenta extremamente útil em estudos toracoabdominais e em outras regiões anatômicas, deve-se investir na otimização de protocolos que visem a controlar e limitar a dose de radiação emitida, principalmente quando utilizada em gestantes.

O contraste iodado utilizado em exames radiográficos e tomográficos, quando injetado por via intravenosa, atravessa a placenta materna produzindo efeitos transitórios sobre o desenvolvimento da tireóide fetal. Novamente, a sua utilização deverá ser considerada dentro do contexto dos possíveis benefícios obtidos pela gestante.



RECOMENDAÇÕES PARA EXAMES RADIOLÓGICOS EM GESTANTES

A indicação de exames radiológicos deve considerar o benefício obtido pela gestante e a disponibilidade de exames alternativos e inócuos ao feto, como a US e a RM. Devem ser levados em conta a idade gestacional, a condição física da paciente e distúrbios gestacionais associados. Deve ser também previamente estimada a dose de radiação absorvida pelo feto com base no protocolo de exame planejado.

A exposição a doses de radiação inferiores a 50 mGy não tem sido associada a aumento do risco de aborto, anomalias congênitas, retardo mental ou mortalidade neonatal. Portanto, considera-se que dose de radiação fetal inferior a 100 mGy não é indicativa para interrupção da gravidez. Todavia, deve-se considerar esta opção quando a dose absorvida e calculada for superior a 250 mGy. Não existem exames radiológicos únicos que exponham o feto a este nível de radiação, mas numa combinação de exames isto pode ocorrer.

Sempre que o exame radiológico for necessário e indicado, deve-se discutir a sua utilidade, riscos e benefícios com a paciente e seus familiares. É importante também informá-la dos riscos inerentes à gravidez e não relacionadas à exposição à radiação, para a ocorrência de aborto, anomalias congênitas e retardo do crescimento fetal (e que podem ocorrer em 20%, 4% e 10% dos casos, respectivamente).

Os exames radiológicos devem ser feitos em instituições que possam garantir a adoção de medidas efetivas de proteção radiológica e possuam equipamentos modernos e regularmente calibrados e aferidos. O médico radiologista é geralmente o profissional mais preparado para avaliar a melhor opção diagnóstica em determinada situação clínica, garantindo segurança à gestante e ao feto.

Comentários

jessica feques disse…
Realmente é um assunto polêmico,radiação em gestantes!tem que observar se o custo benefício é maior que o custo malefício nessa situação.De qualquer forma na minha opinião eu não faria uma radiografia em uma gestante.

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